VIDA E OBRA do Poeta e Jornalista

Biografia

 

Silveira Peixoto entrevista judas : (extraída do livro FALAM OS ESCRITORES VOL. 3 )

 

A telefonista de A Gazeta - o grande vespertino que nasceu de um sonho de Adolfo Araújo e que Cásper Líbero tornou uma das folhas mais populares de São Paulo - estranha, do outro lado do fio:

JUDAS

- "Seo" Agnelo?!

- Sim.  AgneIo Rodrigues de Melo...

- Creio que não trabalha aqui, não senhor...

 

- Trabalha, sim. É o Judas Isgorogota.

 

- Ah! Por que o senhor não disse logo que era ele? Um momento ...

 

Não tarda muito, o poeta inspirado de Recompensa, que é, hoje, por assim dizer, um dos representantes da  inteligência do Nordeste, aqui em São Paulo, combina comigo o encontro desejado.

 

- Você pode vir já?

 

- Posso. Daqui a alguns minutos estarei aí.

 

Dez minutos depois, entro na sala de trabalho de Agnelo Rodrigues de Melo, ou, melhor, de Judas Isgorogota (tratemo-lo assim, que, no seu caso, o pseudônimo liquidou, de uma vez por todas, com o nome de batismo).

 

- Que é que você manda? - indaga ele, risonho, abraçando-me com aqueles modos acolhedores, tão característicos à gente nordestina.

 

- Quero uma entrevista...

 

-Pois, não. Você manda. Poderei publicá-la amanhã...

 

Percebo o equívoco. Ele pensa que estou querendo dar uma entrevista.

 

- Não é o que você está pensando. Quero uma entrevista de você. Vim entrevista-lo...

- Emtrevistar-me?! A mim?!

- Claro.

- Claro,  nada. Essa coisa está é muito confusa. Precisa ser esclarecida...

- Não vejo confusão alguma. Quero uma entrevista de você, sobre você, sobre os seus livros, as suas preferências...

- Francamente, não estou entendendo muito bem. Não sei porque, nem a troco de que, você pretende entrevistar-me. Sou apenas um repórter, já entrevistei muita gente, mas nunca dei entrevista. Que é que há de interessante, em mim, para eu ser entrevistado?

 

 

- Não é preciso você entender. Quero é a entrevista. Você é um dos representantes da inteligência do Nordeste, aqui em São Paulo. Já terminou o seu serviço?

 

- Quase ...

 

- Então, vamos sair. Vamos tomar um café, dar umas voltas pela cidade. Enquanto isso, conversaremos. Depois, eu reduzirei tudo a escrito e estará pronta a entrevista. E não fique ai, a perguntar-me coisas que, agora, eu é que terei a prerrogativa de interrogar.

 

Ele acede. Arruma uns papéis, fecha as gavetas da escrivaninha, coloca o chapéu à cabeça. Alguns momentos mais, estamos na rua. A passos vagarosos, tomamos o rumo de um café do Largo de São Bcnto.

 

- Onde você nasceu?

 

- Em Lagoa da Canoa, no sertão de Alagoas, no mesmo lugarejo em que nasceu Dom José Maurício, Bispo de Bragança e uma das mais belas expressões do clero brasileiro. Deixe-me, porém, contar a coisa, desde o princípio ...

 

- Contanto que você não faça muita poesia, muita lenda ...

 

-Parece lenda, mas é verdade. Aconteceu o começo do século XIX. Um caçador encontrou nas matas de Palmeira dos Índios, na então província de Santa Madalena das Alagoas, uma indiazinha. dentro de um samburá que pendia de uma carnaubeira ...

 

- Aí vem lenda...

 

- Não é lenda, já disse. Juro que é verdade, absoluta verdade. A menina devia ter alguns meses de idade. Os pais, que teriam ido à caça, ali a deixaram, a coberto de dolorosas surpresas. 0 samburazinho, porém, serviu para aguçar a curiosidade do caçador. E carregou consigo a inocente filha dos terríveis "papa-bispos" de Cururipe. Anos depois, fez que ela se casasse com um indígena das margens do São Francisco, em Traipu.

 

- E que é que isso tem com você?

 

- Tem muito. Descendo, em algumas gerações, dessa indiazinha, Sou, portanto, um brasileiro que pode orgulhar-se de ter uma àrvore genealógica, da qual é figura principal a própria carnaubeira, que é, ao mesmo tempo, símbolo majestoso da resistência  brasileira contra todas as intempéries ...

 

 

Faz uma ligeira pausa. E continua, loquaz, sem dar-me tempo para fazer outra pergunta:

 

Minha mãe, que ainda está viva, graças a Deus, foi uma morena bonita, um desses tipos que vivem nos versos simples das canções sertanejas. Meu pai - Severino Rodrigues de Melo - era um sertanejo louro, coisa não rara no sertão nordestino. Viram-se. . . e casaram-se, aos dezenove anos, sob esta condição, imposta por minha mãe: mudar-se-iam para a Capital, logo que nascesse o primeiro filho. Não fora a previdência de minha mãe e, certamente, hoje eu seria um sertanejo rude ... Quem sabe, porém ... Há tantos modos de a gente ser feliz! ...

 

- E quando você nasceu...

 

- Tinha seis meses de idade, quando me trouxeram do sertão bravio do Ipanema, para Maceió. Exemplo de honestidade e de bravura, meu pai iniciou a vida, na Capital alagoana, como sapateiro. Foi assim também, foi como tal, que findou seus dias, depois de haver sofrido privações de toda espécie ...

 

É emocionado, é numa reminiscência, que ele prossegue:

 

- Recém-chegados à Capital, vivíamos, pobres sertanejos, em penúria extrema. Fomos atacados pela maleita. Ficamos ali tremendo de febre, definhando de fome; não morremos, por obra e graça de mãe Inês, uma preta velha, que morava nas vizinhanças.

 

- Tipo da mãe-preta! ...

 

-Isso mesmo. Mãe Ínês Inês foi incansável e meus pais e eu sempre fizemos tudo para pagar-lhe a dedicação, com um reconhecimento que se estendeu pela vida inteira. Ela viveu longos anos conosco, tratando de uns, cuidando de outros, zelando por todos. Um dia, minha mãe me disse que fosse ver mãe Inês, que ela estava às portas da morte. Fui. . . Não me esqueci, até hoje, do espetáculo que se deparou a meus olhos. Aquela criatura boa como ninguém mais, preparara-se cuidadosamente para a morte! Nem o caixão faltava! Quando me viu, seus olhos brilharam num contentamento. Mal podia mover os lábios ressequidos; não conseguia mover, direito, os olhos esgazeados. Assim mesmo, num esforço supremo, indicou-me seus pés e ainda logrou dizer: "Os meus sapatos ... que você me prometeu... espero por eles, para ir com Deus" ...

 

Estamos à frente do quadrilátero de mármore, da mesa do café. O garçom coloca as duas xícaras...

 

- Corri à sapataria, onde trabalhava, pois meu pai falecera no ano anterior - prossegue Judas Isgorogota. Escolhi o melhor pano e comecei logo a fazer os sapatos. Não tardou muito estavam prontos. Regressei, numa carreira, à casinha de mãe Inês, que ficava na Ladeira dos Martírios. Vendo-me chegar, a pobrezinha deixou transparecer toda a sua alegria. Depus em suas mãos esqueléticas a última encomenda. E de súbito, muito serenamente, começou ela a sua caminhada para o Além ...

 

Outro garçom põe o café nas xícaras. Afasta-se, depois. .

 

- Já fui garçom. . . - diz Judas Isgorogota. A Grande Guerra encontrou-me feito garçom no Hotel da Fortuna, em Pernambuco. Fortuna era uma mulher vastíssima e analfabeta. Ainda hoje me admiro da agilidade com que eu anunciava o cardápio do dia aos berros - "Sopa de Talharim!  Ravióli ao sugo! Risoto de camarão! Miúdos dorê! Bifes acebolados! Bife a cavalo! Supremo de frango! Frango ensopado!" ... ou, então: "A boa Peixada dos viajantes! Feijoada à moda da casa! Tripas à portuguesa! Camarões à meia baiana!" ... A noite, havia, sempre, “munguzá", "cuscus doce-, "mal-casados", "tapioca de coco" ...

 

- Vida divertida, heim?!

 

- Não deixava de ser, não. E à madrugada, especialmente, quando chegavam alguns ingleses bêbedos, era uma beleza! As libras esterlinas corriam no Bar da Fortuna, talvez tanto quanto na própria Bolsa de Londres. Três meses depois, conquanto tivesse apenas quinze anos de idade, assumi a gerência do hotel ...

 

- Depois?

 

- Fui obrigado a deixar o emprego ... E que, um dia, entrando de supetão num vagão da "Great Western", ofereci "o melhor hotel da cidade" a um passageiro que logo me reconheceu, escandalizado. Era o poeta Jaime de Altavíla ... Regressei então a Maceió. Ali, em 1916, ingressei como office-boy, nos escritórios da firma lona & Cia. Datam dessa época os meus primeiros versos ...

 

- Qual foi o primeiro?

 

- 0 primeiro escrito e publicado?

 

- Está claro.

 

- Foi uma versificação do conto imortal de Eça - "Suave Milagre". Deu-se em 1917. Eu trabalhava, à noite, na revisão do jornal de Guedes Miranda, que fora diretor do Instituto Benjamin Constant, onde estudei, sabe Deus à custa de quantos sacrifícios. Deixe-me dizer-lhe, neste ponto, que esse Colégio ocupava o edifício do antigo palácio de Alagoas; nesse mesmo sobradão, instalou-se, mais tarde, o célebre "Hotel dos Estrangeiros", que tinha a seguinte legenda, escrita na fachada, em letras garrafais: "0 único que não tem mosquitos'. Impliquei-me com a legenda e, por isso, dizia comumente: "Hotel dos Mosquitos - o único que não tem estrangeiros". E era verdade. . .

 

- Voltando aos versos ...

 

- o Guedes, de início, recusou formalmente o meu trabalho que, aliás, foi o primeiro e último publicado com todas as letras de meu nome. Só aquiesceu em publicá-lo, depois que Almeida Lins, poeta muito seu amigo, disse: "Guedes, eu assinaria este soneto. . .

 

E o "Suave Milagre" saiu numa quinta página de um número de Natal, em meio a anúncios de toda espécie.

 

- E você continuou.

 

- É verdade. Continuei fazendo versos, sempre a desoras, ocultamente, com medo de que os outros vissem ... Ainda hoje, é assim ... Uma lembrança desse tempo é o "Meu retrato", aos dezenove anos, até agora inédito:

 

"Rosto chupado, imberbe, muito esguio,

cabelo a nuca à força me ocultando,

olhos pequenos, cabisbaixo, andando

em passo sempre em regra e não tardio;

 

De cor de barro a tez, olhar sombrio,

chapéu envelhecido inda lidando,

o fato em desalinho, se rasgando;

um sapato me obriga a andar macio ...

 

Resta juntar dois sulcos doloridos

que esta vida mos deu - e não os anos,

que sobre a face trago distendidos.

 

Entanto, passo frio aos meus tiranos,

mesmo aos olhares ímpios dos vencidos,

mesmo aos sorrisos cruéis dos desumanos...”

 

Judas Isgorogota tira um cigarro da carteira. Procura a caixa de fósforos. Não encontra... Saio, com o isqueiro, em seu auxilio.

 

- É evidente, nesses versos - continua ele - a forma, a maneira, o ritmo, a alma de meu primeiro modelo: Bocage.

 

Atira urna baforada para o ar. E quando vou fazer-lhe uma pergunta, avança:

 

- Já influenciado pelo parnasianismo, publiquei, em 1919, no Jornal da Pedra e assinando "Rodrigues de Melo", um soneto - "Madrepérola". Isso me valeu uma tremenda descompostura do poeta negro Rodrigues Melo, que escreveu um artigo de três colunas, no Jornal do Comércio, de Maceió, para acusar-me de "plagiário" e acabar dizendo que o "plágío", afinal de contas, estava apenas no nome ...

 

- Engraçado.

 

- Não deixa de ser. O incidente, ocorrido no início de minha vida literária, gravou-se, inapagavelmente, em minha retentiva. E deu lugar a um outro episódio, de que ainda hoje me recordo, em seus mínimos detalhes. Nos escritórios da - Casa lona", onde, como disse há pouco, eu trabalhava nessa época, havia um rigorismo absoluto. Ali, não se falava, não se fumava, não se escreviam cartas particulares, nem se falava ao telefone, sequer. Imagine a minha angústia, quando rebentou o cscândalo. Na manhã seguinte, entrei naquele estabelecimento comercial, assim mais ou menos como um gatuno. Sorrisos alvares gozavam minha angústia e prelibavam o espetáculo que se daria, quando chegasse o diretor, que era Guido Ferrari.

 

- Quando ele chegou ...

 

- Ao fundo, encostado à prensa, eu tremia. 0 chefe, pensava eu, não me perdoaria, pois jamais perdoara qualquer anomalia, em seus escritórios. Ferrari caminhou, solene, ao longo do balcão. Ao chegar diante do ponto em que me achava, voltou-se de repente e, com a voz arrogante, que lhe era peculiar, disse, para que todos ouvissem: "0,menino tem razão' A poesia é do menino e o nome também. Esse preto que deixe de muita estória. .

 

- Você, então ...

 

- Fiquci perplexo, inteiramente perplexo, como todos os que tinham presenciado a cena. Devo, porém, dizer que, já então, havia resolvido mostrar a Rodrigues Melo que um nome, em si, é coisa que bem pouco vale.

 

Em 1921, surgiu em Maceió um jornalzinho humorístico - 0 Bacurau. Ocorreu-me, um dia, a idéia de fazer uns versos em torno da figura magérrima de Luís Lavenere, espírito culto, que sempre admirei. Fiz os versos; faltava, porém, escolher um pseudônimo, para publicá-los em O Bacurau. Qual seria? Não queria assinar com o meu próprio nome...

 

- Nasceu, então, Judas Isgorogota.

 

- Exatamente. Pensei, comigo mesmo: Judas, na tragédia bíblica, simboliza o "homem possível", da mesma maneira que Jesus representa o “homem impossível", ou seja - o homem perfeito. Judas bem poderia servir de nome de guerra, para um poeta que queria "judiar" da humanidade. Assinei, por isso, Judas Isgorogota. 0 Isgorogota nada mais é que simples corruptela de Iscariote.

 

- E assim nasceu Judas, que acabaria sendo, mesmo, um judas ...

 

- Como?

 

- Sim; acabaria, como acabou, traindo o próprio criador, isto é, traindo a você, tomando o seu lugar, liquidando, de uma vez por todas, com o seu nome, . .

 

- Lá isso é verdade. Voltando ao que lhe- dizia. o soneto alcançou êxito que me surpreendeu; é verdade que o entusiasmo arrefeceu um bocado, quando se soube que o autor era simples empregadinho da "Casa lona". . . , Fiz outros sonetos, ou melhor, outras “caretas”, que obtiveram igual sucesso. No ano seguinte, foram esses trabalhos reunidos em um volume, sob o título de Caretas de Maceió, em edição de Lavenere.

 

- Quando você veio para São Paulo?

 

- Pouco tempo depois, em outubro de 1924, realizei esse meu velho sonho. Nesse mesmo ano, comecei a trabalhar com Monteiro Lobato, na empresa editora que ele fundara. Logo no ano seguinte, entretanto, como resultado da crise que então empolgou nosso país, a empresa teve que fechar ...     

CIA GRÁFICA MONTEIRO LOBATO

- E você foi engrossar o exército dos "sem trabalho" ...

 

- Sofri muito. Vivi ao relento ... - Fome ...

 
 
 

- Não. Fome nunca passei. Quando ela aparecia para visitar-me, corria a fazer o mesmo, isto é, a visitar Paulo Gonçalves, altas horas, na redação em que ele trabalhava. E não arredava pé, enquanto o magnífico poeta não mandava buscar a "média" salvadora ...

 

- Em 1925, em São Paulo, as saudades da terra longinqua me fizeram escrever o meu primeiro "sonetilho", trabalho de forma exata e sintética, em cujo ritmo e em cujo sentido emocional me encontrei a mim mesmo. E por coincidência, esses versos receberam o título de 27 anos:

 

 

27 anos

 

"Vinte e sete anos - me fizeste ler

Na última carta - vinte e sete rosas!"

Se eu pudesse ao menos responder:

 

"Vinte e sete anos de ânsias extremosas!

Vinte e sete vontades de ascender

E vinte e sete quedas dolorosas..."

 

Mas, silêncío neste assunto abjeto.

Ficam-te bem as tuas ilusões...

Fica-me bem amargor secreto

Das minhas vinte e sete decepções...

 

 

- O Paulo que era Paula ...

 

- Não estou entendendo muito tem. . . - redargúi Judas.

 

- Ora, pois você não sabe que o nome todo do poeta era Francisco de Paula Gonçalves?

 

-Sei. E que tem isso?

 

- E sabe que, a princípio, ele se assinava Paula Gonçalves? Sabe por que ele transformou o Paula em Paulo?

         CIA GRÁFICA MONTEIRO LOBATO 

 

- Muito vagamente...

 

- Muito vagamente, nada. Confesse, logo, que não sabe. Pois o caso não deixa de ser interessante, “seo"Judas. Um dia, Paula Gonçalves recebeu uma carta amorosa. 0 signatário, que, dizem alguns íntimos do poeta, era um frade português, fazia a mais apaixonada declaração de amor e afirmava estar disposto a abandonar o burel, para casar-se com a inspirada "poetisa" Paula Gonçalves ...

 

- Então. ele resolveu mudar o nome.

 

- Isso mesmo. Para evitar novas e possíveis confusões, decidiu assinar Paulo Gonçalves.

 

- E aí está como Paula ficou sendo Paulo ...

 

- É exato. E voltemos ao que você estava dizendo.

 

- Em que ponto estávamos?

 

- Paulo Gonçalves mandava buscar a "média- salvadora. . .

 

- Você quer me dar fogo?

 

Acendo, com o isqueiro, o cigarro do poeta. E ele continua:

 

- Em 1927, publiquei Divina Mentira, livro desequilibrado como a vida que eu levava. Nesse mesmo ano - e eu era, então, revisor do Jornal do Comércio, daqui de São Paulo com a colaboração do desenhista Nino, conquistei o primeiro prêmio de literatura infantil, em concurso da Tarde da criança, com o livro em versos Um pirralho na Arca de Noé.

Judas ao Publicar Divina Mentira

 

- Em seguida?

 

 - Consegui, em 1928, uma menção honrosa, com a peça A fada negra, no concurso de teatro Infantil, levado a efeito pela mesma mstituição. De parceria com Carlos Pagliuchi, iniciei, em 1929, uma Opereta infantil - O violino mágico. Mas ...

 

- Mas?

 

- A esse tempo, eu ingressara na redação de A Gazeta. Todos os originais achavam-se em minha tenda boêmia de trabalho, na Gazeta Infantil, quando rebentou a revolução de 1930 ...

 

- Então ... - Tudo ficou reduzido a cinzas. .

 

- Que pena!

 

- Não foi pena, não. Isso redundou em proveito para as letras nacionais. . .

 

- Recompensa, quando saiu?

 

- Nove anos depois de ter publicado Divina mentira, resolvi dar à publicidade Recompensa, isto mesmo instigado por Sud Menucci e Miguel de Arco e Flexa. Já me foi dada a alegria de ver esgotada a segunda edição desse livro; a terceira aparecerá em breve e será “ edição para o Brasil", pois que as duas primeiras foram adquiridas, integralmente, por S. Paulo, fato que, aliás, tem para mim significado todo especial. Fui feliz com Recompensa, apesar da menção honrosa que lhe conferiu a Academia Brasileira de Letras. Recompensa recompensou-me ...

 

Judas pede mais uma xícara de café.

 

- No ano passado, fui atacado de um dinamismo fora do comum, em mim. Além da segunda edição de Recompensa, publiquei, em parceria com José Niccolini, a novela humorística João Camacho, que Raimundo Magalhães Júnior, o criador admirável de O homem que fica, de Mentirosa, e de A mulher que todos querem, vai teatralizar, realizando, assim, uma peça que, certo, alcançará sucesso.

 

- Como nasceu João Camacho?

 

 

 

- Deixe-me dizer~lhe, logo, que Niccolini é que é o verdadeiro pai da criança". Ele havia publicado, no suplemento dominical de um diário paulistano, uma série de contos engraçados. Um dia, em conversa, lembrei-lhe a reunião desses contos, numa novela. "Não tenho muito tempo. Se você quisesse fazer isso. . ." - insinuou-me ele. Aceitei, e a papelada veio toda para as minhas mãos. Arrumei jornalisticamente a matéria, dei uma espinha dorsal à obra e não tardou João Camacho entrou para o prelo. Nicolini, agradecido, impos que meu nome figurasse ao lado do seu, na capa do livro. E aí está como surgiu a firma: "Niccoliní & Isgorogota".

 

- Desencanto ...

 

- Desencantou-se, também em 1938.

 

- Você candidatou-se, não há muito, a um concurso do Ministério da Educação.

 

- E esse concurso proporcionou-me a pior impressão de toda a minha vida. Concorri com dois livros: Um passeio na floresta e O bandeirante Fernão, poemas infantis, magnificamente ilustrados pela arte de Paim. Os trabalhos premiados, não sei muito bem quais foram; sei que seus autores receberam confortantes "boladas" ... Qual não foi minha surpresa, porém, ao verificar que meus livros tinham sido "escolhidos", entre os mais interessantes ... Um passelo na floresta, então, recebeu a honra de ser o volume n.° 1 da -Biblioteca da Criança Brasileira-, organizada pelo Ministério da Educação! ... Essa honra, creio eu, deveria caber ao livro que conquistou o primeiro prêmio ... Outra surpresa reservou-me o malfadado concurso: meu livro foi publicado como sendo de Rodrigues de Melo, quando, na verdade, quem o escreveu foi Judas Isgorogota, como figurava nos originais. Deus queira que o Sr. Rodrigues Melo, de Maceiô, não venha de novo atenazar-me o espírito com o tal plágio de seu nome"! ...

 

- Qual a hora em que, regra geral, sente melhor disposição para escrever?

 

- Geralmente, alta noite. Uma idéia qualquer não me deixa dormir. Levanto-me, faço café, tomo alguns goles, sento-me frente à máquina ... Só tenho o trabalho de datilografar, porque os versos "já vêm feitos", através de uma trama emocional, que, confesso, me abate profundamente.

 

- O livro que lhe causou impressão mais forte?

 

- Foi Madamee Curie. Jamais, na vida, li qualquer coisa que tanto me fizesse sentir, não a grandeza exponencial de uma vida, mas a poesia terna e pura que a espiritualizou. Tive, ao ler esse livro, desejos de ser ministro da Educação ...

 

- Ministro da Educação?! Por quê?

 

- Para mandar fornecer, a todas as jovens brasileiras, um exemplar de Madame Curie. Para que lessem, para que seguissem o exemplo dessa grande mulher, para que haurissem a essência de ternura, de amor, de poesia e de beleza, que há em suas páginas.

 

Saímos do café, descemos a Rua Líbero Badaró, rumamos para o Parque Anhangabaú. É aí, numa alameda batida de sol, que Judas Isgorogota me diz:

 

- Sou um homem que crê na poesia! Não poderia, aliás, ser de outra forma. Devo à poesia tudo que tenho e tudo que sou. Foi ela, foi essa boa e terna companheira, que me abriu todas as portas a que bati ...

 

Depois de uma pausa, acrescenta:

 

- Acredito, porém, que nunca me abrirá as portas da imortalidade acadêmica, porque meus dedos nodosos a elas jamais baterão ... Essa vaidade eu tenho, Não poderá sofrer o fascínio de tal imortalidade, quem já conquistou, com seus versos, a imortalidade imensamente consoladora da admiração da gente bandeirante ...

 

- Dizem que você vai morrer, . .

 

Judas olha-me, surpreso, bem dentro de meus olhos. Compreende depois e sorri.

 

- Judas Isgorogota é um boneco que arranjei, para sorrir da humanidade. De uma feita, o endiabrado monstrengo passou este recibo a Fernandes Lima, então governador de meu Estado:

 

"Recebi do Dr. Fernandes Lima,

governador perpétuo de Alagoas,

pela graça de Deus, das almas boas

que seguem a rota dos que estão por cima,

a importância mencionada acima

de "réis 20$000", por que as mesmas pessoas

das urbes, do sertão e das lagoas

vendem seu voto de entranhada estima

e por cuja quantia me sujeito

a votar no doutor; e em testemunho,

passo o presente, por José do Coito,

em duplicata, para um só efeito.

Maceió, Jaraguá, a 12 de junho de 1918".

 

 

- Mas, o boneco foi crescendo ...

 

- É. Com o correr do tempo, sem que eu o percebesse, apoderou-se de minha personalidade, de meus pensamentos, até de meus sentimentos. Hoje, eu é que sou o boneco ... Os críticos irritam-se com o pseudônimo e os católicos fazem figas. Tudo por causa do Judas! Vou matá-lo, no ano próximo, que é quando pretendo editar o ultimo livro de Judas Isgrogota: Os que vêm de longe. Estará, assim, terminada a sua existência. . .

 

- A dele, ou a sua?

 

- Talvez a minha, também ... Uma vez que a criatura se apoderou do espírito do criador, é muito possível que eu não possa subsistir... E era uma vez um poeta! ... Penso, aliás, que já é tempo de penitenciar-me, como todo judas que se preza ... Nesses últimos tcmpos tenho concorrido para uma verdadeira balbúrdia nos arraiais católicos. . . Um amigo do Ceará contou-me ter assistido a uma acalorada discussão entre um jornalista e um padre daquelas remotas paragens. Afirmava o velho sacerdote que Isgorogota" é qiie-. é o sobrenome do "traidor", e não Iscariote, ---o que aliás já havia sido amplamente provado por um ilustre poeta paulista"!. . ~ Esta outra é do mesmo quilate: conta Eduardo Frieiro ter ouvido, em uma igreja de Belo Horizonte, urna moça contar a tragédia bíblica a algumas crianças, Ao chegar no ponto culminante, disse ela: "Então, Judas lsgorogota deu um beijo na face de Jesus Cristo" ... O Fríeiro, ao que conta o Brito Broca, ficou arrepiado, e por isso mesmo é um daqueles quc desejam que o novo Judas seja enforcado. Será, prometo, mas ... é tão interessante tudo isso! Imagine que delícia é ouvir o meu nome nos lábios de minha filhinha - Judas Isgorocrota! ... E se você visse e ouvisse com que entono ela diz esse nome! E que encanto que têm, em seus lábios rosados e puros, aquelas sílabas gritantes! ...

 

 

Formação Administrativa

Em divisões territoriais datadas de 31-XII-1936 e 31-XII-1937, figura no município de Traipú o distrito de Lagoa da Canoa.
Pelo decreto estadual nº 2435, de 30-11-1938, o distrito de Lagoa da Canoa deixa de pertencer ao município de Traipú para ser anexado ao município de Arapiraca.

 
 
Judas nunca mais voltou a visitar a sua terra:
 
Caio Porfírio Carneiro:

"Almoçava todos os dias no restaurante da UBE, e nas rodas de amigos não deixava de relembrar coisas de sua terra, Maceió. Veio de lá em 1927, muito moço, e nunca mais voltou para revê-la. Eu não me conformava:

- Por que não vai rever sua terra, Judas? É tão fácil... Voo de poucas horas. 

Punha sempre obstáculos, nenhum deles convincente. "

 
 
                                                                                                         
 
No jornalzinho "O BacuraU"
 
O bairro de Jaragua em Maceió onde judas escreve seu primeiro trabalho no jornalzinho "O Bacurau":
 

O bairro de Jaraguá é a própria história de Maceió. Naquele pequeno trecho encravado entre o mar, o Poço e o Centro da cidade, surgiram os primeiros surtos de desenvolvimento da então vila, que cresceu tanto e superou a capital da Capitania, a então cidade de Alagoas, atual Marechal Deodoro, provocando a luta da transferência da capital para Maceió, onde já residia o governador e sediava as principais partições publicas. Esse desenvolvimento do bairro deve-se ao seu porto, que transformou o local num imenso comercio com negócios de todos os rumos.

    Esse desenvolvimento do bairro deve-se ao seu porto, que transformou o local num imenso comercio com negócios de todos os rumos. 

Mas Jaraguá surgiu antes mesmo da povoação de Maceió, originada de um engenho de açúcar de propriedade do coronel Apolinário Fernandes Padilha, no local onde hoje é a Praça Dom Pedro II. Aldeia de pescadores foi logo chamando a atenção de quem passava pelo caminho, margeando o mar.
   Quando da chegada do primeiro governador da Alagoas, Sebastião Francisco de Melo e Povoas, desembarcando no porto de Jaraguá, a fama do arrebalde aumentou, projetando-se um lugar de futuro promissor. Naquela época (1818), já existiam algumas casas e a igreja de Nossa Senhora Mãe do Povo, construída pelo português Antonio Martins. Depois foram chegando novos investidores, que se instalaram no novo bairro: José Gomes de Amorim e seus irmãos Joaquim e Antonio, que previam o rápido crescimento do lugar.
   Na verdade, graças à proximidade do ancoradouro, Jaraguá se tornou aos poucos um centro comercial de grande importância, sendo ocupados por bonitos sobrados, a partir da segunda metade do século passado. A arquitetura da época foi sendo aos poucos modificada. Mas o projeto de revitalização, que será executado pela prefeitura, retornará o esplendor do século XIX.  

 

 

O Poeta Judas Isgorogota

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Na GAZETA INFANTIL Judas dirigia a redação com mão firme ( o pseudônimo K.D.T. ):
 
O Estado de São Paulo 25 de Julho de 1984 , Raif Kurban :
 
"Agora, um pouco da história da Tertúlia Bandeirantes, que praticamente nasceu na "A Gazeta Infantil", onde o K.D.T (pseudônimo chacarístico do notável poeta alagoano Judas Isgorogota, mantinha seção muito dura, mas correta"
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Nossas LetrasLetras, Arte e CiaA-A+22/02/2014 Autor(a): Caio Porfirio Função: Escritor e crítico literário

 

A aposentadoria como escritor 

Caio Porfírio Carneiro: (Nossas letras , Arte e Cia)

"O poeta Judas Isgorogota trabalhou umas quatro décadas no jornal A Gazeta, de São Paulo, fundada por Cásper Líbero, e de lá saiu, não aposentado, mas através de um ‘acerto’ com a direção da empresa, então falida e em mãos de outro grupo, que lhe deu uma importância irrisória pelos anos de trabalho, pago em parcelas mensais. Quando se aposentou como escritor, com a minha ajuda e a ajuda de Antônio Carlos Augusto Bonafé, a Previdência descobriu o ‘acerto’ grosseiro e forçou o jornal a aposentá-lo como devia. Ele nos ficou grato pelo resto da vida e me deu meia dúzia de bom uísque estrangeiro, para que eu me embebedasse à vontade.

ACORDO EMPREGATICIO

 

Na redação do jornal:

Caio Porfírio Carneiro : (Nossas letras, Arte e Cia)

"Judas não era bem um espírito vingativo, mas quando não gostava de um escritor ou de sua obra, sai da frente ... Descia a lenha através da sua página literária d’ A Gazeta. Arrasava com o sujeito."

"Eu colaborava semanalmente na sua página literária, resenhando livros. Brigávamos sempre. Quis modificar um texto meu, porque elogiei um livro de José Mauro de Vasconcelos. Ele detestava o Zé Mauro. Eu ameaçava de não escrever mais nenhuma linha para o suplemento dele. Ele recuava e me dava presentes. Tenho ainda comigo uma bela camisa vermelha, importada, caríssima."

 

Quando trabalhou com Monteiro Lobato:

Caio Porfírio Carneiro:

"Gostava também de relembrar os anos de trabalho na editora de Monteiro Lobato. Lobato quem leu os seus primeiros versos e assombrou-se com o seu talento. Nessa época ainda não adotara o pseudônimo de Judas Isgorogota. Assinava o seu nome verdadeiro: Agnelo Rodrigues de Melo. "

E se fez poeta de renome assinando sempre Judas Isgorogota. Agnelo Rodrigues de Melo só em documentos oficiais. Como aconteceu com o escritor Marcos Rey, que nasceu Edmundo Donato.

 

A publicação do último livro - XXX Poemas:

Um dia, eu, Volney Milhomem e Clóvis Moura resolvemos fundar uma editora. Chancela bonita: Editora Pasárgada. O primeiro livro, belamente impresso e pago totalmente pelo autor, claro, porque não tínhamos nenhum dinheiro e nem distribuidor, foi Noite Azul, excelente obra poética de Aluysio Mendonça Sampaio. Até o coquetel de lançamento muito concorrido, na Livraria Teixeira, foi pago pelo Aluysio.

Passamos a ser procurados. Cobrávamos uma faixa de lucro, porque queríamos ficar com algum... Pois o Judas, para nos prestigiar, porque ele tinha editora de graça, a Saraiva, que lançava todos os seus livros, publicou pela Pasárgada uma seleção dos seus poemas: XXX Poemas de Judas Isgorogota, em 1973. Ele escolheu até a gráfica e desembolsou tudo. Foi o último livro dele publicado em vida. 

 

Personalidade:

 

Não era um espírito religioso, mas admirava muito a figura de Cristo e muitas passagens da Bíblia, presente em vários dos seus poemas. No fundo, um artista e um cético. 

Sempre bem vestido e de chapéu, pasta debaixo do braço, naquele andar meio bamboleante, estatura mediana e magro, meio encurvado nos seus mais de setenta anos, óculos e olhar voltados para o chão. 

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Judas trabalhou até o final de sua vida. Ao lado da cama judas ainda lia e escrevia suas últimas poesias em vida.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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